O desiludido utópico
Rosângela Bittar, de Brasília
18/06/2010
O deputado mineiro Paulo Delgado (PT) disputa em
outubro, aos 59 anos, o sétimo mandato de deputado federal. Professor e
sociólogo, é um político reconhecido por exercer a tarefa parlamentar
sem perder as rédeas do pensamento que o faz um crítico agudo da
instituição a que pertence. À distância da omissão, porém, pois Delgado
não choraminga em berço esplêndido: é autor ou coautor de leis e
resoluções que tentaram organizar e moralizar a Casa onde exerce o
mandato que lhe foi dado pelo eleitor.
Por exemplo: é um
dos autores do artigo 37, parágrafo 1º da Constituição Federal, que
proíbe propaganda pessoal dos governantes, um dos problemas que denigrem
a política. É autor da lei das cooperativas sociais, que regulamenta o
trabalho das pessoas em desvantagem, e da lei da reforma psiquiátrica,
que dispõe sobre o tratamento aberto dos doentes mentais. Desta, se
orgulha de ter levado adiante uma proposta que nasceu totalmente da
sociedade.
Autor do projeto
de lei da responsabilidade educacional e do projeto de lei que limita o
uso da propaganda pelo Estado - novamente aqui está o parlamentar às
voltas com a propaganda que deturpa o funcionamento das instituições - e
relator do Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares (TNP).
Delgado é autor do projeto de lei que regulamenta a terceirização no
Brasil.
Teve, sobretudo,
um trabalho de resultados claros no conjunto de resoluções e leis que
tentaram levar alguma disciplina ao parlamento, alguma ordem ao
exercício de suas atribuições, algum constrangimento aos que não se
preocupam com questões éticas. Foi autor, nessa linha de trabalho, do
dispositivo constitucional que cassa o mandato do deputado ausente e do
projeto de resolução que cassou, com grande repercussão à época, o
mandato dos deputados Felipe Cheid e Mario Bouchardet, na Constituinte,
por ausência ("lei dos gazeteiros").
Identificado com
os temas da educação e das relações exteriores, receberam sua
participação dezenas de trabalhos do parlamento nessas áreas. A
propósito do desencanto do eleitor e de alguns políticos com a vida
parlamentar, o deputado teve com a seguinte conversa com o Valor:
Valor: Depois de seis mandatos e
preparando-se para o sétimo, tem uma avaliação sobre a desilusão de
muitos com o parlamento e a desistência de poucos a seguir disputando
eleições?
Paulo Delgado: A desilusão é uma não escolha e também um
grito de alerta. A política se complicou para políticos independentes e
que defendam a autonomia dos eleitores. O campo democrático do diálogo
livre e do debate com a sociedade diminuiu, substituído pela oferta de
tudo sob o controle do Estado. Os partidos políticos, cada vez mais
empresas privadas lucrativas, incentivam isso do Estado total, pois são
sustentados por ele. Muitos eleitores também. Seu voto tem dono e é
usado para pagar compromissos. A desculpa é sempre obra, verba, emenda,
liberação, orçamento. Ou seja, obrigações constitucionais do Estado
viraram negócios eleitorais de parlamentares. Quem testa a desilusão de
um político é o eleitor. Ela tem muito a ver com a eficácia do
parlamentar em tempos de novos valores da eficácia.
Valor: Como resumir a razão
essencial da desilusão?
Delgado: O que está desiludindo é o esgotamento do modelo de
parlamento e a ação parlamentar que não se renovou e aceitou a perda do
poder de formulação e condução do debate nacional.
Valor: Tendo sido exceção, um
parlamentar que conseguiu exercer os seus mandatos fazendo leis, qual a
saída para o parlamento voltar ao seu eixo, retomar sua função
constitucional?
Delgado: Ser autor de muitas das leis federais desde a
Constituição de 88 que criaram, melhoraram ou humanizaram o padrão da
política pública em nosso país pouco importa hoje. O formulador está
perdendo a batalha para o entregador. Pois sem cheque ninguém acredita.
As emendas parlamentares passaram de R$ 3 milhões para R$ 12 milhões,
distorção que nos faz ordenadores de despesa e dependentes do Executivo.
E o Congresso Nacional, que já era uma casa de despachantes de luxo dos
prefeitos, agora virou a própria câmara de vereadores federais. Nos
Estados a coisa é pior, pois também nenhuma assembleia é independente
como poder.
Valor: O papel do parlamentar teria
que passar por uma nova concepção?
Delgado: Claro que é essencial, sendo governista ou não,
contribuir para a boa gestão municipal, e os bons prefeitos existem. Mas
não centralizando tudo, projetos e recursos, na mão dos governos
estadual e federal. A autonomia do poder municipal morreu e levou junto a
autonomia da política parlamentar em relação à formulação de projetos e
leis. É o deputado homogêneo num país complexo e continental diante de
um eleitor em liberdade assistida.
Valor: As dificuldades de reeleição
atingem mais deputados que insistem em ficar nos temas mais reflexivos e
nacionais ou há também falta de votos para os despachantes?
Delgado: Deputado bom, hoje, é quem aparelhou um ministério
ou uma secretaria estadual. E não há mais exceção em nenhum partido
político. Até dar bola está dando voto. Quem privilegia mais o debate, a
formulação, a opinião, os temas mais reflexivos ou a elevação da
qualidade e justiça das leis perde cada vez mais eleitor. Ou seja, é o
tempo da ênfase do político do dia a dia, muitas vezes predador, e não
do que tem acumulação e moderação de apetite, considerado sonhador ou
fora de moda.
Valor: Em outras palavras, é a
vitória do clientelismo...
Delgado: Só que falta horizonte à prática política
clientelista para entender que a elevação do padrão material de vida sem
a correspondente elevação do padrão espiritual não sustenta a
democracia da nação. É só olhar o espectro dos transtornos afetivos na
vida familiar, o crack e a violência crescente. E ainda, muito da má
conduta pública é alimentada pela prevalência da ultra-regulação do
Estado sobre a sociedade sem autonomia. É preciso dar modernidade plena
ao progresso.
Valor: Qual a razão de termos
chegado a esse progresso material com regressão espiritual?
Delgado: Não se inventaram instituições novas capazes de
responder aos desejos de autonomia, liberdade e co-responsabilidade
pública e privada. É preciso continuar lutando pela modernização das
instituições e reinventá-las em três direções: desinstitucionalizar a
informalidade; formalizar o padrão de intermediação de interesses; dar
constitucionalidade, universalidade e legalidade à conduta pública.
Valor: Essas observações parecem
distantes da imagem que se tem hoje, não só do poder Legislativo como
dos demais poderes, Executivo sobretudo. Parecem todos funcionar movidos
apenas a propaganda e marketing, sem maiores compromissos com novas
práticas.
Delgado: Na política brasileira o passado não passa. Desde a
Constituinte defendo diminuir a força e o papel da publicidade e da
propaganda em política. Só sou a favor da orientação de caráter
educativo. A publicidade política está assentada no mito da falsa
clareza, do entorpecimento do cidadão com a politização de tudo. A
política virou clichê. O tempo de televisão gratuito hoje é um negócio
privado de donos de legendas. Retire a publicidade e a propaganda da
política e a verdade deixará de ser vista como o êxito de uma campanha
publicitária, como virou. Para muitos, não importa mais o que o político
é, mas o que ele parece ser.
Valor: Como resgatar a honestidade, a
ética, que, pelo que se pode constatar, nunca estiveram tão ausentes
quanto nas últimas recentes legislaturas, inclusive a partir de quem
deveria dar o exemplo por estar no comando?
Delgado: Acabar com a casa de tolerância ao erro que virou o
parlamento e fazer, pela prevalência de normas rígidas de conduta, que o
senso de dever predomine sobre o senso de interesse. Acabar com esse
arranjo institucional promíscuo e antieleitor. Toda a integridade do
eleito está baseada no seu próprio caráter, formação e convicções
pessoais anteriores à sua entrada no sistema político. Não dá para
continuar como está: o honesto eleito é visto como desonesto por estar
num ambiente de impunidade; e o desonesto eleito se sente em casa e
ainda ri de quem não lhe faz companhia. Em virtude do alto custo
individual da eleição, preservar o mandato ficou mais importante do que
exercê-lo e sumiu da agenda política a luta pela autonomia e a cidadania
plena do eleitor.
Valor: O eleitor não tem nenhuma
proteção contra o mau parlamentar, não tem como substituí-lo e o
corporativismo não deixa que seja punido com o desligamento aquele que
agir contra o interesse da sociedade, e há muitos desse tipo.
Delgado: Com o modelo atual não, pois as leis são arcaicas.
Hoje, o sistema comercial está mais avançado na defesa do consumidor: se
posso devolver um carro com defeito, por que não posso devolver um
deputado estragado? Há uma desescalada de valores e um fundamento
negativo no discurso político, ou seja, uma embromação. Por isso,
soberania popular, autonomia do voto, controle da qualidade do mandato e
modernização do sistema eleitoral e partidário que faliu não estão
verdadeiramente na ordem do dia. Em política, parece que tudo nasce
original e termina como cópia.
Valor: Não deveria se dar no
Legislativo o melhor ambiente para o exercício da política partidária na
essência de suas propostas?
Delgado: Desde que fosse um ambiente de polêmica e não de
rixa, como se transformou. A opinião superficial ou a contestação tola
que alimenta o noticiário político do dia a dia tem como único objetivo a
crispação. Querer o mal para o outro e isolar em guetos os fatos
relevantes. É um arsenal de habilidades sem qualquer horizonte ou
princípio. A partidarização de tudo é a maior doença da política e um
expediente para afastar do seu meio a reflexão crítica de longo prazo.
Os maiores desafios brasileiros - justiça, juventude, industrialização,
educação, energia, ciência, previdência, violência - não cabem no
confronto partidário, que é sem substância, artificial e eleitoralista.
Valor: Estamos com o parlamento de
mais baixa reputação da história?
Delgado: Dizem que sempre piora a cada eleição. Quem compra
voto não compra o decoro. A ideia da reputação não é mais muito
importante entre nós. Mas, sem hierarquia de valores ou autoridades
morais reconhecidas pela nação, qualquer um sente-se no direito de agir
de qualquer maneira.
Valor: O desiludido com a política é
desiludido com o parlamento, com os políticos, com as autoridades, com a
falta de resultados, com o eleitor?
Delgado: E com o cada vez menor espaço para a liberdade de
opinião. A política perdeu a utopia e não se regula mais pela economia
dos signos e desejos, mas pela economia pura do comércio de interesses. A
despolitização e privatização da prática política ameaçam a qualidade
do processo democrático.
Valor: Vai se candidatar a um novo
mandato?
Delgado: Mantenho minha coerência e liberdade. O eleitor que
avalie. Nunca tive obrigação pessoal de vencer, mas de ser candidato das
ideias que defendo desde professor. Há uma reciprocidade de expectativa
entre o candidato e o eleitor. A obrigação do candidato é fazer
campanha, mas a informação sobre a eleição depende muito do eleitor. Fui
o mais votado do PT de Minas na Constituinte, quando não imaginava
vencer. Nunca perdi na oposição. Fiquei suplente no governo quando não
supunha perder. Tudo é política, mas a política não é tudo, aprendi com
Bobbio [Norberto]. Minha utopia de desiludido. Quem sabe eu volto a me
iludir diante de tanta coisa por fazer, mesmo diante do desafio que é
buscar 80 mil mineiros que também pensem assim.